"(...)Não acontecia nada e o tédio não passava e ele sempre chegava em casa apenas pra ficar ali olhando o nada, sem nem conseguir dormir de tão vazio que se sentia. Até que naquele domingo, por algum motivo, a câmera em sua escrivaninha passou a lhe importunar profundamente. Com uma naturalidade um tanto bizarra, então, pressionou o botão vermelho e desligou-a, logo fazendo o mesmo com o resto das câmeras da casa – e pensando que muitos outros ao redor do mundo, e até mesmo muitos outros naquele edifício, tinham por costume fazer o mesmo de vez em quando; pensando que aquilo jamais poderia trazer-lhe grandes conseqüências.

Mas não."
O CARRASCO DE ÓRION

16.11.04

 
Rubens ainda passou muito tempo sentado, fitando a mercúria desligada em sua mão, incapaz de acreditar que tinha se passado por tão idiota e, pior ainda, que tinha de fato agido como um.

De que tinha adiantado toda sua criptografia, seus IPs e IDs ocultos, o nick, os embaralhadores de rastreio? De que tinha adiantado se cada invasão sua, cada derrubada de servidor, cada tomada de sítio, cada alteração, cada manifesto postado, haviam sido filmados e retransmitidos ao vivo? A descoberta de Caio não era, afinal, mais do que juntar dois e dois, não muito diferente do que ele fazia agora com o próprio Eduardo.

Sim, Rubens era Big H. Mas nem sempre fora.

* * *

Fora numa quinta-feira. Ele deixara a mercúria ligada enquanto pegava o café, ativava Alcmena e começava os preparativos para a operação. Reviu os dados que havia recebido na manhã do dia anterior, enquanto meditava sobre Big H. Já havia encontrado o sujeito uma vez, muito rapidamente, ouvido falar dele muitas outras, em especial sobre sua wall, que diziam ser impenetrável.

A voz sintetizada de Alcmena interrompeu seus pensamentos.

Ponto 1 ativado. Acesso de Streamline por Alpheus garantido.
- Levante o Gibraltar, cuidado nunca é demais.
Afirmativo.
- E tente hackear outra linha pelo Peneus. Se eu estiver certo, duas vão ser até pouco.
Afirmativo.

Rubens apoiou o café de volta na mesa, através do mar de ícones holográficos que giravam ao seu redor. Ele não gostava de trabalhar para ninguém além de si mesmo, não gostava daquela primeira tarefa, e gostava ainda menos do tal E*RsT*s, que a havia delegado; mas dera sua palavra. E tinha muitos erros a consertar.
Pontos 2-12 ativados. Acesso de Streamline por Peneus garantido.
- Deixe os outros endereços, Mena, um trabalho de cada vez.
Afirmativo.
- O acesso do E*RsT*s tá bloqueado?
Afirmativo.

Ótimo. Não teria que se preocupar com aquele cretino pondo a mão no que descobrisse.

Aberto servidor #Nemea#. Lançar sinal.
- Não, abortar sinal.
Afirmativo.
- Passe um scanner e veja se há mais alguém no servidor.
Negativo.
- Bom.

Se E*RsT*s dizia para procurar naquele servidor, era porque o sujeito havia passado muito tempo lá fuçando. E a tal Nemea era um ramo da June, que por sua vez era subsidiária da Z, o que significava que: 1. E*RsT*s ou era contratado da Z, ou tinha algum interesse em protegê-la; e 2. Estava mexendo com os rúfers, e o que quer que tivesse naquela merda de Nemea, era um puta grito-mestre.

- Mena, pega os registros de visitas ao servidor, e procura o I.D. que te passei de manhã, por favor.
Procurando... Nenhum registro do I.D. encontrado.

Ele já contava com isso. Era de se esperar que o sujeito pudesse apagar os próprios rastros, mas Rubens tinha um palpite que podia ser a solução para encontrá-los.

- Tenta procurar por torres de arquivos do tipo .sdr.
Procurando... Localizado: 1.226 arquivos em 2 torres.
- Pode conseguir acesso a eles?
Negativo. Torres lacradas.
- Executa o Boeing 767 e derruba logo essas merdas.
Alvo não reconhecido: “essas merdas”.
- Eu quis dizer as torres de .sdr, Mena.

Computador idiota.

Alvo alterado: torres #N43h01 e #N43h02. Acionando Boeing_767.exe... alvo destruído.
- Ótimo. Agora faça uma busca nos arquivos .sdr, palavras-chave Typhoon ou Equidna.
Procurando... Encontrado: 3 arquivos. Todos confidenciais em nível 12.
- Listar.
Typhoon_05-10-31.sdr, Typhoon_10_11_31.sdr, Typhoon_02_13_32.sdr.

O Typhoon tinha estado lá. Três vezes. Roubando arquivos nível 12. Caralho. O Typhoon. Aquilo era muito grito, ele tava alfinetando lá no alto.

- Abre o primeiro. Só a parte de texto.
Segue o registro: “Invasão detectada com 37 minutos de atraso. O invasor, ID desconhecida, deixou mensagem-assinatura de hacker Typhoon. Assinatura verificada como idêntica a outras do mesmo invasor, provavelmente a mesma pessoa. O invasor usou uma versão alterada do programa tipo...”
- Não interessa. Quero saber o que ele veio roubar. Localizar expressão “arquivos” e “roubados” simultâneas no texto.
Localizado: 4 ocorrências.
- A primeira.
“... foram um total de 22 arquivos roubados, todos referentes a transferências de pessoal e equipamento para o projeto Ártemis, por meio dos recursos da June. Recomenda-se extrema cautela, visto que a interferência do mesmo, caso venha a tomar ciência dos objetivos do projeto, ameaça todas as projeções Ambrosiae, adquirindo proporções desastrosas. As medidas de segurança sugeridas acima devem ser instaladas imediatamente, sendo também aplicadas aos servidores de Ártemis e June; se arquivos de lá forem roubados, o risco é ainda maior.”

Caralho. Caralho, caralho, merda, puta que o pariu, os palavrões eram a única coisa na cabeça de Rubens. Mesmo naquela época ele já era esperto o bastante pra saber que quando a palavra Ambrosiae era mencionada e você a ouvia, ou lia, sair inteiro pra contar a história passava a ser uma perspectiva otimista. Na verdade, estava surpreso de ter ficado ileso tempo o bastante para ler tudo aquilo, e no instante em que pensava isso, e começava a matutar que a melhor explicação possível era a de estar sendo auxiliado enquanto o fazia, Alcmena bipou.

Uma mensagem para você.
- Quê?! – o susto da voz estava atrasado em relação ao da mente, que já passara à especulação. – Que mensagem?
Convite para bate-papo em áudio.
- E o remetente? – perguntou, já adivinhando a resposta.
Assinou apenas “H”.

Merda, os arquivos iam ter que esperar.

- Aceita o convite, Mena.
Iniciando.

O ícone de “Big H” projetou-se pela sala, um leão dourado, seguido pela voz eletronicamente distorcida para evitar reconhecimento, através do emissor do fone.

- Olá, Alseides. Acho que você já fuçou o suficiente, não?

Merda de novo. Rubens não tinha a menor intenção de encarar o cara assim, de frente e de surpresa ao mesmo tempo. Se metade do que diziam da wall fosse verdade, não teria chance. Mas agora, fudido, fudido e meio.

- Acha, é? – retrucou Rubens.
- Calma, não vou fazer nada. Ainda. Acho que podemos tirar vantagem desse encontro.
- Podemos?
- Você está interessado nas projeções Ambrosiae.

Ele estava interessado principalmente era em garantir sua própria segurança.

- E?
- Calma, meu bira, você parece muito ansioso. Se está mesmo interessado, eu tenho muito a te contar.

Ah, mas não tinha mesmo, até porque se tivesse, não ia se oferecer pra contar. Ninguém era burro de fazer isso. “H” só queria tentar descobrir o máximo antes de acabar com ele, talvez até tentando traçar a origem de sua conexão no caminho – nada que fizesse muita diferença pra ele, que parecia já saber quem Rubens era e para quem trabalhava, embora talvez não o que ele tinha ido fazer lá. Provavelmente fazia aquilo só para se entreter, como um gato brincando com um rato antes de comê-lo.

Rubens deu um leve empurrão no botão de seu microfone, bloqueando a emissão do bate-papo.

- Mena, status do Gibraltar.
Funcionando integralmente.
- Porra nenhuma que tá. Mena, direciona o Alpheus pra fora do servidor.
Defeito/ mal funcionamento. Impossível completar.
- Filho da puta! Mena, traz o Alpheus de volta pra cá agora!

A voz de “Big H” voltou a soar pelo fone:

- Ah, eu tentei evitar isso. Juro que tentei.

Defeito/ mal funcionamento. Impossível completar.
- Puta que o pariu!
- Ora, Alseides, não se desespere. Mantenha a calma.

Rubens puxou de volta o botão do microfone:

- Calma é o caralho! – gritou, e após apertar o botão novamente, completou. – Mena, aciona o arrow, alvo... temos a I.D. do usuário “H”?
Positivo.

O filho da puta era tão convencido que não tinha nem se dado ao trabalho de esconder. Era a melhor chance que tinha

- Acionar arrow com alvo nele. Função prioritária: penetrar e destruir sistemas de memória e armazenamento de dados.
Arrow acionado.
- Mas o que é isso? – indagou a voz distorcida de “Big H”, sem disfarçar o sarcasmo. – O ratinho acuado resolveu brigar?
- Mena, resultado do arrow.
Enviado. Detido na wall do usuário “H”. Dano provável causado: nenhum.
- Acione novamente.
Arrow acionado... Enviado. Detido na wall do usuário “H”. Dano provável causado: nenhum.
- É inútil, Alseides. Pare com essa besteira.
- Acionar club, alvo usuário “H”, função prioritária desativar a wall.
Club acionado. Wall do usuário “H” atingida. Dano provável: nenhum.
- Tudo bem. – interrompeu “Big H” com falso pesar. – Não diga que eu não avisei.

Poucos segundos depois, as representações holográficas começaram a falhar.

- Mena, status.
Scanners detectaram interferência externa. Danos extensos: sistemas de projeção, som, programas arrow, club, Alpheus, Peneus, Gibraltar. Danos menores: banco de dados em texto, áudio, vídeo, memória, processa.
- Mena? Mena! Desligar recursos holográficos de navegação, som e comandos por voz.

O computador respondeu por uma mensagem de texto no monitor, onde se lia “afirmativo” enquanto a sala retornava a escuridão, e Rubens debruçava-se sobre o teclado e digitava freneticamente.

Agora o único jeito era resolver aquilo na mão.

Uma mensagem de “Big H” piscou no monitor em meio às inúmeras linhas de código que Rubens interpretava com olhos treinados:

“Pare, Alseides. Ainda é tempo”.

Ele não perdeu tempo respondendo. Usou toda sua concentração para separar, entre o mar de programas invasores que o scanner agora listava, aquele que procurava. Não precisou muito esforço para saber que era o claw.exe, nem que fosse pelo gosto horroroso de seu adversário para nomes. “Big H” continuou com as mensagens.

“E*RsT*s é mto burro d gastar vc aki. Nemea ñ tem nada q interesse a ele. Vc vai c queimar por nada aki. Desiste e t deixo ir.”

Rubens riu consigo mesmo e voltou a digitar após avaliar as propriedades do claw e confirmar suas suspeitas. Outra mensagem pipocou cerca de 15 segundos depois.

“Já cansei Alseides. Vc ñ tem + wall nem + nada q possa derrubar a minha, e c tivesse ñ derrubaria pq isso é impossível, e c tivesse defesa nada t defenderia do meu vírus. Volte pro E*Rst*s e mande ele desistir d procurar aki.”

- Seu idiota. Você já me deu os meios de te vencer. – Rubens murmurou sozinho, enquanto teclava o enter, marcando o final do código que tinha digitado pelos últimos cinco minutos, antecipando a mensagem que escreveria a seguir.

“Idiota. E*Rst*s ñ quer saber d nada da Nemea, ele ñ me mandou pegar nada daki.”
“Ele t mandou fazer o q entaum?”
“Me livrar de vc.”
“RPC! Vc? C livrar d mim?”
“Vc é um imbecil pq acha q nenhum prog pode furar sua wall, e nenhuma wall pode barrar seu vírus.”
“Ñ sou imbecil pq estou certo.”
“Entaum vai verificar o seu status agora e ver qual dos 2 ganhou.”

Não houve resposta nos 3 minutos seguintes, e Rubens gargalhava, sabendo que agora era seu oponente quem não podia perder tempo com as mensagens.

“Pois é, eu roubei os dados do claw e usei ele contra vc. E vou roubar sua wall tbm, pq acabo d conseguir os dados dela. E tbm aproveitei p redirecionar os sistemas d emergência da Nemea p sua conexão, a segurança deles vai tá chegando aí por agora. Vc logo vai tá no mínimo preso c ñ tiver morto. Já q fikei c sua wall e o claw, tô pensando em passar a usar seu nick tbm e despistar todo mundo. Fike feliz, talvez isso acabe t ajudando.
Bom, t+, inda tenho um bando de coisas p fazer. Adeus e obrigado, seu merda.”

Não houve mais resposta nenhuma. Rubens bebeu o resto do café, desligou o computador e voltou pra casa a pé.

No dia seguinte, não atendia mais pela alcunha de Alseides.



posted by Heitor 01:57

27.10.04

 
- Sabia que viria.

Ana estava descalça na areia molhada, as sandálias penduradas na mão direita, em vão levantando o vestido com a mão esquerda para tentar evitar que a água o alcançasse, uma missão na qual, como atestava a umidade do tecido, vinha falhando vergonhosamente. A noite estava tão fria quanto possível para qualquer noite sem chuva no Rio de Janeiro; o vento agitava os fios de cabelo dela como faria a pequenas labaredas, e o céu nublado, cinzento, sem estrelas, realçava o breu intenso de seus olhos.

Sempre um clichê.

- Então. – ele se aproximou, deixando os suspiros finais da onda mais recente atingirem seu tênis. – No mínimo já sabe o que vou perguntar também.
- Por exemplo?
- Por que você matou os três? Por que eles três? Como?

Ela suspirou, a voz suplantada pelo rugido da arrebentação.

- Pergunta errada, Eduardo.
- E as câmeras? O que você fez com elas, nos apartamentos, no Jason’s?
- Eu? O que eu fiz? O que você fez, Eduardo?

Uma onda mais forte impulsionou a água pela areia, penetrando por cima dos tênis dele e gelando seus pés. O vestido dela, agora abandonado aos desejos da maré rasa, oscilou com intensidade.

- Como? – ele indagou.
- Você ainda prefere ignorar o que realmente importa. Ainda não está pronto.
- Pronto?

Ana o ignorou, fitando o céu nublado por mais alguns instantes, e principiou a caminhar de volta para a calçada, passando ao lado de Eduardo.

- Ah, não mesmo! – ele gritou e, segurando firme o braço esquerdo dela, puxou-a para si. – Você não vai embora sem umas respostas!

Ela não lutou para se libertar, pelo contrário, aproximou o rosto dele, e sorriu:

- Respostas, Eduardo? – seus olhos agora emitiam aquele brilho saído do fundo da escuridão, e ele sentia como se a qualquer momento pudesse ser tragado. - É isso mesmo que você quer de mim?
- Não. – ele respondeu.

E a beijou.

Ela não resistiu. Deixou que ele tocasse seus lábios finos com os dele, abrindo e fechando a boca por cima da sua, sentindo o relevo de sua carne, antes de reagir. Então inclinou o rosto, moveu os lábios, jogou-se no abraço de Eduardo e lançou a língua de encontro à dele, num princípio de movimento conjunto e ritmado, ao qual ele buscou responder à altura.

O cheiro da areia molhada subia pelo pescoço dela, mesclando-se ao aroma agridoce de seus cabelos, que ele, ao acariciar, sentia densos, pesados, quase uma prisão para os dedos. E enquanto os seios de Ana apertavam-se contra seu peito, e o gosto da saliva dela preenchia toda a superfície de sua língua, ele constatava, atordoado, o ritmo e a quantidade de movimentos rapidamente aumentando, que cada pedaço seu, cada músculo, cada poro, parecia agir a mando de algo além de seus comandos, como se uma outra vontade invisível ditasse os rumos do beijo.

Ele tinha, nos primeiros instantes, imaginado como seria trepar com Ana ali mesmo na praia, tentado visualizá-la despida, adivinhar qual seria o gosto de seus mamilos, de sua buceta molhada, o que ela gritaria para expressar seu prazer; chegou a pensar em tentar localizar pelo tato o fecho do vestido e puxá-lo, em apalpá-la nos lugares certos, em abandonar o beijo e começar a descer os lábios pelo seu pescoço – mas logo esqueceu de tudo isso e passou a não conseguir raciocinar.

Sentiu, pela pressão da pele dela, seu próprio coração acelerando, e num impulso empurrou o rosto dela com o seu, inclinando-a na direção do chão. A partir daí era como se seu corpo inteiro pulsasse, e ele pôde sentir, mesmo durante o beijo, que os lábios dela se contorciam como num sorriso. Ela segurou o rosto dele com as duas mãos: seu toque era gelado, e assim que o calafrio percorreu todos os nervos de Eduardo, ela cravou os dentes em sua língua.

Ele deixou os braços caírem, emitindo um barulho abafado que, para seu espanto, lembrava apenas muito vagamente um grito de dor. A sensação era tão intensa que o paralisava, e ela o empurrava na direção oposta, fazendo com que agora fosse ele quem se inclinasse. O gosto peculiar de sangue permeou a mistura de saliva, com Ana alternando entre unir os lábios para sugá-lo, e abrir novamente para tornar a espalhá-lo com sua própria língua. Agora, com os pelos eriçados, o corpo de Eduardo principiou a tremer espasmodicamente apenas para, a seguir, enrijecer-se. Conforme ela o segurava até quase ficar na horizontal com o chão, ele já não conseguindo mais determinar o sentido da gravidade, sentiu as coxas dela roçando pela braguilha de sua calça, e só então percebeu que estava ejaculando.

Ela afastou os lábios e o deixou cair na areia. A água espumosa ainda o atingiria oito vezes, enquanto Ana se afastava na direção da calçada, antes que ele conseguisse mover-se novamente, e mais três até que pudesse falar, ainda que Eduardo tivesse dificuldade em reconhecer como sua a palavra que deixava sua boca:

- Mais. – ele disse, a princípio quase num sussurro, depois subindo de volume até alcançar um grito rouco e desesperado. – Mais!
- Ainda não.– ela respondeu, sem olhar para trás.

E seguiu pela areia, depois pelo asfalto, até desaparecer.

posted by Heitor 22:51

23.10.04

 
Eduardo virou a rua sem pensar para onde ia, tomando o rumo da lagoa, demorando até sentir-se seguro o bastante para tirar a mão da testa e andar ereto. Havia quem o olhasse e até o reconhecesse na rua, num misto de estranhamento e admiração, e, se por um lado isto o incomodava, ao menos o ajudava a ofuscar o restante.

O laboratório, as câmeras, o sorriso – não, não, esqueça. Esqueça a cor do jaleco, dos cabelos, os olhos, os poços de escuridão, as luzes, não, não pense nisso, esqueça esqueça esqueça!

Quase atropelado no cruzar da rua, Eduardo beira o Jardim de Alá, volta com as mãos à cabeça. A negação era tão difícil. Pense na rua, pense em tomar cuidado com os veículos, nas pessoas observando. Aqui, um banco na calçada. Pare, descanse, tire as mãos da testa. Isso, melhor. Não pense nela. Não pense nas injeções. Uma coisa não tinha a ver com a outra, não queria dizer nada. Não queria dizer nada, não havia nada para se saber, escondido no âmago dele. Não havia agonia, nem beleza; nem grito, nem dor; nada para se sentir esvair ou aumentar, nenhum impulso, nenhuma consciência, nenhum líquido. Não havia o vermelho sangue, o branco porra, o negro luto. Não havia...

- Eduardo. – a voz era distante e familiar, mas masculina, descontraída. – Eduardo! Responde, porra!

Rubens. Uma presença normalmente malquista, mas a cuja voz Eduardo agora se agarraria na tentativa de escapar à pontada de dor aguda e às lembranças que Ana lhe deixara, e que ele de alguma forma sabia que passariam, se ao menos pudesse pensar e lidar com outro assunto qualquer.

- Porra. – ele conseguiu responder, entre seu respirar ofegante.
- Engraçado pra caralho, maltrão. Vai treinando e um dia você aprende pelo menos uma boa piada.

Ele era a coisa mais espalhafatosa na rua àquela hora da noite. A camiseta amarelada, meio brilhante, com um logotipo qualquer bolado por ele mesmo, reluzia em contraste com as sombras das árvores simetricamente cortadas; a bermuda tinha algumas listras da mesma cor, entrecruzando-se. O cabelo longo, modernoso, era também como a bermuda, menos claro um pouco, cheio de tranças e linhas, colorido de forma berrante, talvez tentando, unido ao restante da imagem, fazer frente à sua pele morena. Seu peito era estufado, seus braços moviam-se cheios de vigor e desprezo.

Como faria alguém que vinha tirar satisfações, passar sermões – ou ambos.

- Acontece.
- Claro que acontece. Com os outros.

Ele aproximou-se.

- Tá dodói?
- Muito.
- Ah, é?
- Uma doença terrível, complexo de inferioridade. Quase me mata de desgosto.

Eduardo já estava recuperado. Pensar nas respostas o distraia de maneira agradável.

- Assim você me deixa até preocupado.
- Bobagem. Não é nada que a visão da sua cara nojenta não cure.

O sorriso vigoroso de Rubens desapareceu momentaneamente, diante disto. Ele se esforçou para fazê-lo retornar pouco depois, auxiliado por um grande “há!” aberto, semelhante aos que Miguel costumava usar, mas deliberadamente sarcástico. Eduardo não riu de volta, nem via motivo para tal – de fato, pensava que havia uma dose grande de verdade no que acabara de dizer, o que não lhe parecia divertido nem engraçado.

Fiel à sua tentativa de demonstrar indiferença, Rubens emendou o princípio de uma inquisição:

- Que cê veio aprontar aqui, zé ruim?
- Vim beber.
- É? Todo santo dia, nas últimas duas semanas? Você desliga a câmera só pra vir aqui beber?

Eduardo não saberia dizer se aquilo o irritava mais do que divertia.

- É.
- É? Pois eu tive juntando uma coisa aqui, camarada, e tenho certeza que você sabe que não sou o único. Nego acha o Caio gelado no quarto, e sua câmera não tem registro do horário da morte. Acha a Sônia caída na rua perto desse mesmo bar de onde tu saiu, e sua câmera não tem registro. Aí ontem é a Márcia que tá morta no caminho de casa, e adivinha se tua mercúria tava ligada?

O tempo entre as perguntas era mais um intervalo para Rubens recuperar o próprio fôlego, do que a espera por uma resposta, e ele prosseguia o interrogatório de maneira unilateral.

- Agora, o que você acha que dá pra concluir de tudo isso?
- Que você é um bisbilhoteiro paranóico?
- Não, não, eu acho que dá pra concluir que toda vez que desliga a câmera, é porque você tá aprontando merda. Porque sabe o que mais que eu vi? Em todas as mortes, as câmeras fixas de vigilância dos locais dos crimes ficavam chuviscando.
- A polícia também viu isso, e não achou suficiente pra me botar preso.
- É? Só que eles não viram que, toda vez que você entra naquela merda de bar, a câmera do lugar faz a mesma coisa!

O quê?

- Quer dizer, que coincidência estranha, não é? O mesmo efeito, acontecendo sempre em algum lugar onde você esteja?
- Muito estranho. – Eduardo pensou alto, o que Rubens não pôde distinguir como genuíno ou irônico, embora se tratasse do primeiro caso.
- É, né? Será que é de lá mesmo que você sabota a vigilância? Será que alguém de lá sabota pra você? Será que é um cúmplice seu que está lá em cima, Eduardo? E o que você ganha com isso? O que alguém ganharia com isso?

Eram todas boas perguntas, pensava Eduardo. Muito boas perguntas.

- Vai, desembucha, cedo ou tarde eu acabo descobrindo, mesmo. É melhor contar agora.
- Brincando de detetive, Rubens?
- Pois é. Falando em detetive, estive revendo umas anotações bem legais que a Sônia fez. Ela também tava bancando a detetive, lembra?
- E?
- E nada. Achei que você fosse querer saber.

Era uma oferta. Agora ficava claro. Rubens, ainda que talvez tivesse algum interesse em incriminá-lo, buscava na verdade algo diferente, algo a respeito do qual ele julgava que Eduardo saberia.

- Achou errado.
- É? Ainda acho que não. Ainda acho que você está escondendo alguma coisa, e acho que, pra dizer a verdade, nem você mesmo sabe o tanto que é importante. E ainda acho que, se você quer ficar livre de encrenca e saber o que é, tem mais é que parar de escrotar e abrir o jogo. Então fala logo.
- Pra você espalhar isso pela rede amanhã de manhã e transformar em mais fama pro seu próprio nome? Não, acho que não.

O rosto de Rubens agora se fechava de maneira definitiva.

- Tu não sabe o que está em jogo aqui, Eduardo. Não pensaria assim se soubesse.
- Eu não penso porra nenhuma. Eu sei. E você não esconderia uma ogiva nuclear de um homem bomba se te parecesse motivo de orgulho.
- É? Escuta aqui, seu pezinho pretensioso de merda, você pensa que sabe alguma coisa? Você acha que está se rebelando, acha que faz alguma diferença? Você não faz idéia do que eu estou fazendo, não faz idéia do que eu enfrento todo dia. Você acha que é por fama, pra valorizar meu nome que eu tento saber o que você esconde? Esse nominho bunda, esse cocozinho? “Rubens”. Não vale nada, não significa nada, o nome não interessa, o reconhecimento não interessa.
- Não é desculpa para um nick tão ridículo.
- Foda-se, o nick nem era meu.

Ouvindo isso, Eduardo abandonou a postura desleixada e cravou o olhar em Rubens, num gesto que podia ser tanto um misto de surpresa com uma conclusão lógica, como o movimento final de uma jogada muito bem planejada.

- Não era seu nick?

Rubens calou-se, virou os olhos, dando-se conta do erro que cometera. Eduardo definitivamente parecia divertir-se.

- Engraçado, Rubens, eu nem sabia que você tinha nick, quanto mais um que não era seu! Vamos, vamos, pra que você precisa de um? O que você andou fazendo escondido?

O outro abriu os braços enquanto respondia:

- Você não diz, eu não digo.
- Hm. Que impasse, hein?

O silêncio durou um instante, até que Eduardo, bem de repente, desandou a rir, bem de mansinho, o riso de alguém que se lembrava de uma piada. Rubens fez menção de tentar interromper, mas o outro mesmo se adiantou a isto e cortou-o:

- Ah, até que essa foi boa... “Que impasse, hein?” Pfffff! He, he, he!

Rubens deixou os braços caírem de volta no lugar.

- Hã?
- Eu já sabia de tudo, Rubens. Não tem impasse porra nenhuma, o Caio me contou. Eu sei quem é você.

Rubens novamente demorou pouco para superar a surpresa e o desgosto.

- É? Sabe mesmo?
- Hmhm.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Absoluta?
- Absoluta.
- Foda-se.

Eduardo calou-se. Não esperava por isso; era um pouco infantil, mas tremendamente eficaz.

- Se tu já é tão sabichão, não vou mais perder tempo. Tchau.
- Isto não foi perda de tempo.
- É?
- “É?” “É?” “É, né?” Pare com essa merda, responde de outro jeito.
- Eu faço o que quiser. E você enfia o outro jeito no cú.

Ele virou-se e começou a ir embora.

- Você é o pior de todos, mesmo, Rubens. Ninguém mais caiu na armadilha tão deliberadamente, nem conseguiu se enganar tanto a ponto de pensar que não caiu. Você nunca escondeu nada.

O outro parou, virou-se de volta.

- Do que você está falando?

Do que ele estava falando?

- De câmeras.
- O que têm as câmeras?
- Você as deixa ligadas.

Rubens chegou a abrir a boca para perguntar “como assim”, mas chegou à resposta sozinho antes disto e interrompeu o caminho das palavras. Voltou-se para sua mercúria, flutuando a pouco mais de meio metro dele, e pareceu surpreso com sua presença, como se ela nunca tivesse estado lá. Com uma ordem do controle em sua cintura, ele a chamou para perto e, instintivamente, acessou um punhado de arquivos antigos.

Eduardo passou por ele com passos determinados.

- Onde cê vai?
- Terminar um assunto. – respondeu, sem a rispidez anterior.

E seguiu rumo à praia, sem que Rubens pensasse em detê-lo.


posted by Heitor 21:31

18.10.04

 
Já fazia coisa de meio mês que eles se encontravam todos os dias, e Ana e ele agora saíam do bar na maioria das vezes. Foi um dia depois de Márcia morrer, e na véspera Ana tinha estado o mais próximo possível da fúria que ele a imaginava capaz. Naquele dia, porém, mostrava-se lacônica, melancólica até.

Ela o deixava falar, e ele, mesmo na falta de assunto, buscava incessantemente o que lhe dizer, pois percebia que ela o observava de maneira interessada, como se o admirasse.

- E sabe o mais engraçado? – veio a dizer, em dado momento. – Tenho visto muito isso, agora. Os lags fazem isso com os logs deles. Desligam as câmeras, se escondem. Virou moda.
- Escondem – ela inclinou o rosto – porque querem ser revelados.
- Gente é assim mesmo.

Aqui ela demonstrou uma inédita preocupação.

- Você ainda vai pagar caro por isso, Eduardo. Tudo isso ainda vai trazer muito desgosto.
- Não me importo.
- Se importa, sim, se importa. Pensa que não, mas.

Ela suspirou. Suspirar era absolutamente incongruente com Ana, quase como se não fosse a mesma pessoa. Eduardo preocupou-se também, à sua maneira, e perguntou sem perceber o que fazia:

- E você, Ana? Quer ser revelada?

Ela respondeu sem retornar o olhar.

- O que mais seria?
- Hm. Faz sentido.
- E você, Eduardo? Também é assim?
- Como é que eu vou saber?

Agora os olhos dele é que não a miravam de volta. Ela endireitou o rosto, esticou o pescoço.

- Por que você faz isso?
- Isso o quê?
- As câmeras.

Ele cruzou os braços por cima da mesa, abaixou e balançou a cabeça, o rosto na direção do chão.

- Não sei bem. Acho que. – batia os dedos sobre a mesa – Acho que por que não agüentava mais ter que ser alguém. Não agüentava mais ter uma banda preferida, um vlog preferido, uma carreira, um objetivo na vida, um sonho. Não agüentava mais me preocupar com todas as pessoas que me olhavam do outro lado da câmera, me preocupar se elas me achavam interessante ou patético, se riem de mim, se me admiram, se gostam de mim. Estou sem saco de tentar ser interessante a algum público-alvo, aos pés ou à elite, ao pessoal da tecnorgânica ou aos que alguém achou que eu considerava meus amigos. Estou cansado de ter que pertencer a algum grupo ou me encaixar em alguma categoria de gente. Olho pra todas essas pessoas se exibindo pela merda da HV, e penso que não importa o que elas estejam dizendo ou fazendo, na verdade dizem sempre “sou único e especial e quero mostrar isso para todos meus amiguinhos e fãs através de meus múltiplos, variados e únicos interesses!” Estou achando um porre tentar ser ou querer qualquer coisa, ainda mais único ou especial. Eu não quero mais nada.

“Só quero você”, ele tentou completar. “Só você”. Quase completou.

- Você carrega um fardo muito grande. – ela sentenciou, olhando ternamente.

Ele levantou o rosto por reflexo, pensando que talvez não estivesse ouvindo direito, enquanto ela continuava.

- Fugir da armadilha é muito difícil. Libertá-lo vai ser pior, afinal de contas, vai completamente contra sua natureza.

Do que ela estava falando?

- Do que você está falando?
- Da dor e do prazer, da vida e da morte, do segredo e da revelação. Você sabe do quê. Talvez finja que não sabe, talvez até pense que tenha deixado pra trás. Mas agora que começou, você não pode mais deixar nada pra trás, meu segredo. Meu pequeno. Meu anjo.

Ele sabia. Sim, ele sabia, em algum lugar dentro de si mesmo, ele ouvia as palavras dela antes que saíssem de sua boca, em algum lugar elas faziam sentido. A luz brilhante no fundo dos olhos de Ana voltou a tinir, e aquela pontada no peito de Eduardo emergiu novamente, como da segunda vez em que se encontraram. Os olhos dela, suas mãos, agora lhe tocando o rosto, passando por seus cabelos, as palavras, as luzes, as injeções, a dor. Tudo ali dentro, tão agonizante e tão terrivelmente assustador, e ela estava certa, estava certa e ele não poderia suportar nada daquilo.

- Meu precioso... – ela tentou prosseguir, mas o grito de Eduardo a interrompeu.
- NÃO! – ele saltou da mesa e desceu correndo as escadas, enquanto empurrava de volta as lembranças e as sensações, a mão na cabeça, cambaleando. – Não fale nada disso comigo! Não termine, não me mostre, eu não quero mais! Não quero mais!


posted by Heitor 15:48

15.10.04

 
Tiraram uma das noites para se entorpecer. Longe de um ato súbito, foi uma sugestão da própria Ana que levou dois dias para ser levada à cabo, diante de uma certa insistência de Eduardo em permanecer sóbrio, que, ele veio a pensar mais tarde, não passava muito de um reflexo de sua atitude ao longo do último mês. A bem da verdade descobrira, ao ouvir a sugestão de Ana pela segunda ou terceira vez, que sua vontade de experimentar as sensações proporcionadas pela droga não havia desaparecido totalmente – pareciam apenas aguardar a oportunidade de fazê-lo de outra forma, de renovar o gosto que se tinha perdido com a rotina e o tédio.

Ele levou parte de seu agora não tão gigantesco estoque de entorpecentes – tinha atirado metade dele pela janela um dia, só para se divertir com a multidão que logo se aglomerou lá embaixo para disputá-lo a tapas, no único evento que tomou o cuidado de filmar pessoalmente em muitos anos. Decidiu não levar nada muito pesado: sin, cerveja, vinho, erva, e só um pouco de soma; o bastante. Sabia que o gringo, Jason, dono do lugar, não o expulsaria por trazer consumo de fora se não o fizesse de forma espalhafatosa – afinal de contas, era famoso.

Ana tinha uma garrafa de whisky já aberta em mãos no momento em que a avistou. Foram se alterando mais ou menos ao mesmo tempo, ela a princípio mais rápida, de já começar entornando duas doses do whisky, ele algo depois a alcançando com uma garrafa inteira do vinho. Acenderam um baseado para dar um tempo, e se pegaram rindo sem motivo algumas vezes.

Bem, rir, ele pensava então, era um termo que não se adequava muito à atitude de Ana. O que se poderia chamar de riso nela era na verdade não muito mais do que uma pequena extensão de seu sorriso, acrescido somente de lábios trêmulos, olhos mareados, e um som grave, baixo, quase inaudível, que deixava sua garganta sem abrir a boca pelo caminho. Agora não mais o riso forçado que ele ouvira antes, o que parecia dizer “tolinho”, mas ainda assim não tão bem um riso, não como o que as outras pessoas costumavam dar.

E se ela ficou mais boba, entorpecida, não passava a berrar, não ficava extremamente alegre ou triste, não embolava muito a língua. Falava mais devagar e mais baixo, aproximando-se muito de seus ouvidos, virando seu rosto com os dedos antes de se aproximar. O sopro quente dela lhe entrava pelas orelhas, o bafo de álcool subia pelo nariz, o toque era firme e terrivelmente breve. As palavras foram tendo menos importância, enquanto Eduardo ia se perdendo no mundo dos tons e gestos, passeando os olhos por Ana, estranhamente temeroso de tocá-la. Ela lhe passou uma sin, e enquanto desembrulhava outra para si, permaneceu inquisitiva, esperando alguma reação. Então sorriu – o sorriso mais próximo do riso, não o outro.

- O quê? – ele reagiu, parando para colocar a sin na boca – O quê? O quê foi?
- Você não estava ouvindo uma palavra do que eu disse! – não era reprovação, ela estava achando muita graça naquilo tudo.

Eduardo não disse que não. Aparentemente mentir para ela, mesmo que como uma brincadeira, estava além de sua capacidade.

- Seu tiltado. – Ana seguiu. Ele deu de ombros, riu de volta.
- Desculpa. - sentiu os braços flutuarem um pouco, o efeito já estava bem mais forte, ele já não tinha tanta resistência àquela mistura toda. – O que você estava dizendo?

Ela pegou outro copo, bebeu, ele acompanhou; e no momento em que ele descia novamente a mão, ela gesticulou, tocou-o novamente, e virou seu rosto para dizer-lhe ao ouvido:

- Estava dizendo que você não precisa fazer nada, que enquanto não mostrar o que faz, para eles, você vai estar fazendo tudo.

Os lábios dela chegaram a encostar em sua pele, logo abaixo do ouvido, arrepiando-lhe os pêlos da nuca.

- Lags. São assim mesmo. – não soube pensar em mais nada a dizer, precisou dizer alguma coisa.
- Não. Gente é assim mesmo. Você é assim mesmo.
- Eu? – ele tentou parecer cético.
- Sim.
- Eles é que estão me usando. Estão criando uma fantasia a partir do desconhecido, porque não sabem agir sobre o conhecido.
- Gente é assim mesmo.
- Não sou assim. Não tenho nada com isso. Só quero que me deixem em paz.

Ela se afastou um pouco, recostou-se na cadeira.

- É isso que você quer? Que te deixem em paz?
- É, ora.
- Posso te deixar aqui, então. – ela concluiu. E levantou-se, rumando para a escada.

Ele a seguiu, largando as doses de soma na mesa, meio desesperado.

- Não. Não! Não!

Desceu a escada correndo, ela o esperava na porta. Pensando bem, era a primeira vez, em todo aquele tempo, que ele a via fora do bar.

- Quero ir contigo.
- Então venha. – ela correu rumo à praia. – Já que ninguém sabe o que você faz, no mínimo, faça alguma coisa!

Era a primeira vez que ele a via correr. A primeira vez que a via gritar também.

Eduardo a seguiu. Passearam descalços pela areia da praia – ele odiava a areia e odiava andar descalço, mas não se importou. Ana tropeçou de maneira tola e atrapalhada no próprio vestido duas vezes, com o equilíbrio atordoado pelo entorpecimento; na segunda, puxou-o junto a si, rumo ao chão, quando ele buscou auxiliá-la. Pararam ali deitados, um ao lado do outro, Eduardo ainda estranhamente temeroso do toque dela.

- Você tem um jeito muito chamativo de pedir pra te deixarem em paz, Eduardo. - sentenciou Ana, alguns minutos depois, levantando em seguida, e aos poucos desaparecendo de vista, sem que ele pensasse em tentar impedi-la.


posted by Heitor 18:10

8.10.04

 

V. PAIXÃO

Fazia mais de um mês que encontrara Ana no bar pela primeira vez, e já não se lembrava bem de como era a vida antes disso.

Via-a todo dia agora. Tinha sido assim desde o dia em que Caio morrera: ela estava sempre lá, sentada no canto. Não diziam muito; Ana parecia adivinhar-lhe os pensamentos e traduzi-los em palavras antes que o próprio Eduardo os articulasse. A princípio tentou obter mais informações, coisas como seu nome inteiro, de onde ela vinha, como sabia todos aqueles detalhes das mortes de seus vizinhos de antemão, enfim, quem ela era.

- Você já sabe. – ela respondeu com um leve sorriso, somente uma vez, e depois foi só silêncio, e retornava ao silêncio sempre que ele lhe perguntasse algo deste gênero.

Eduardo, se por um lado pensava que ela, com isso, apenas realçava seu ar misterioso, e que provavelmente a frase não deveria fazer sentido, por outro não conseguia deixar de lado a conclusão que lhe parecia mais óbvia: ela era uma maníaca homicida e ele, com isso, seu cúmplice. Uma mulher que vinha sistematicamente assassinando todos que tinham...

Tinham o quê? Havia qualquer coisa ligando as mortes, além dos sintomas de envenenamento que as acompanharam, seguidas ou não de algo mais violento; mas Eduardo não conseguia juntar na cabeça o que seria. Estava lá em algum lugar, e ele não saberia definir, e não se importava mais. Não se importava com quem ela fosse, de onde vinha, nem mesmo com o que pretendia fazer a ele ou a qualquer um.

Até onde podia dizer, estava apaixonado.

Não que pudesse dizer grande coisa. Tudo que sentia na presença dela, ou enquanto pensava nela, só não era mais estranho do que ela mesma. Ana conseguia aliar à constância de estar sempre todas as noites no mesmo lugar, vestida de maneira semelhante (sempre um vestido de tom escuro, ligeiramente largo), com o mesmo sorriso freqüentemente brotando em seus lábios, as poucas palavras, o mesmo negro dos olhos; uma atitude oscilante, imprevisível, surpreendente. Mais do que temeroso ou curioso, Eduardo achava-se agora fascinado, tomado de admiração.

Houve um dia em que ele chegou mais cedo, pouco antes de desistir de uma vez de freqüentar o trabalho. Não passou em casa, comeu um neco qualquer a caminho, chegou no pub pouco depois de escurecer, e ela estava lá se sentando como quem acabara de chegar. Para testar sua idéia, no dia seguinte chegou bem depois das dez: ela fazia o mesmo movimento, dando a mesma impressão. E poucos dias antes daquele, já tendo largado o emprego, passou a tarde inteira lá, para tentar estar presente no momento em que ela aparecesse; quando já passavam de duas da manhã, decepcionado, resolveu deixar a idéia de lado e ir, mas, enquanto ia ao banheiro, o que tinha se esforçado muito para não fazer por horas e horas, e tendo esquecido a mercúria, largada de forma desleixada na mesa, retornou para pegá-la – e lógico, lá estava Ana, com o trinque na mão, como se já o observasse naquela mesma posição há horas.

Clichê demais. E ele não se importava.

Aquela experiência o convenceu em definitivo a desistir de qualquer tentativa do gênero. Nos últimos três dias ele tinha chegado na mesma hora de sempre, para já encontrá-la sentada – como sempre.

- Gosto do que você faz. – ela disse, naquele dia.
- Como assim? – ele perguntou, enquanto se sentava, ao que ela respondeu entregando-lhe o trinque. – Com a câmera?
- Sim.
- Mas não faço mais nada com ela. Mal a ligo.
- Sim.
- É isso?

Silêncio, sorriso prazeroso. Ana pegou-lhe a mão, puxou para perto, acariciou. Ela seria assim, doce, carinhosa, pelo resto da noite. Eduardo não soube entender aquilo como resposta de qualquer gênero, mas lembrava-se de ela ter dito algo semelhante antes, e não disse mais nada.

* * *

Num dia muito anterior, coisa de uma semana antes, por um momento Eduardo acionou a trimag, e ela prontamente interrompeu-o:

- O que está fazendo?
- Só vendo meu pop. – e emendou, muito pouco depois, sem muita consciência – Nem liguei a mercúria.
- Hm.
- É porque. Ah, olha só pra isso! Não dá pra entender!
- O quê há? – ela estava ríspida naquele dia, quase grosseira.
- O que há? Há que essa merda não pára de subir! Sou o rúfer do prédio, que só tem cobra, e hoje tô encostando no rúfer da porra da cidade!
- Hm. Você é pop.
- Pop é uma coisa, mas isso é ridículo!
- Eles gostam de ver seu vlog.
- Gostam? Como? Não passa nada no meu vlog, minha mercúria passa mais da metade do dia desligada!

Ana deu de ombros. Não falou muito o resto da noite, respondeu de maneira apática à meia dúzia de perguntas que Eduardo fez, e foi o bastante para que ele voltasse para a casa perturbado, passasse o dia seguinte inteiro se perguntando que merda tinha feito para que ela reagisse assim.


posted by Heitor 20:09

13.9.04

 

- Já lhe disse que não se apegasse tanto a eles. – sentenciou Ramirez, abrindo a porta – Não quando temos tão pouco tempo, tão pouca chance.

Ela fez que não ouviu, pôs-se a mexer nas configurações do casulo, nos arquivos. Ajeitou o jaleco.

- Anna. – ele insistiu. – Não fale com ele, ele está marcado para amanhã. Deixe-o imerso.

Ela não deixou. Analisou as datas e horários marcados nos arquivos, comparou com os gráficos dos padrões celestes, e sorriu. Ramirez não pôde deixar de perceber, como já tinha percebido que Anna escondera-lhe algo de importância nos últimos meses. Mas fez que não ligava, e sentou-se na cadeira, enquanto ela punha-se a retirar o menino do casulo, ainda inconsciente, e respondia:

- Você sabe que não precisa me acompanhar, doutor.

Ele apertou uma das mãos por sobre o braço, roçando o couro da luva negra nos dedos.

- Não. Não preciso.

Ela puxou os fios ligados ao garoto, limpou-lhe um pouco o rosto, ajeitou o cabelo.

- Você sabe que eu nunca escondo nada de meus colegas de trabalho.
- Jamais cogitaria que escondesse.

Anna deitou o menino na cama, cobriu-o até pouco acima da cintura.

- Jamais cogitaria que houvesse algo de especial em uma das crianças.

Ela fez o melhor que pôde para disfarçar a surpresa.

- Isto, Cristovam, é porque você falha em ver algo de especial nas coisas pequenas.
- Nas coisas pequenas? – riu-se Ramirez. – Anna, não preciso te lembrar com o que trabalhamos aqui todos os dias, preciso?
- Sei muito bem o que fazemos. Sei o quanto você se importa.
- Tanto me importo – ele lançou os olhos em direção ao garoto, que despertava, enquanto prosseguia. – Tanto me importo, que não te impeço de visitar este fedelho.

Anna sorriu novamente, talvez começando a compreender.

- Tia? – o menino chamou, esfregando o rosto.
- Estou aqui, pequeno.
- Tive um sonho tão esquisito.
- Teve, meu bem? Como foi?
- Tinha uma moça nele, bonita, parecia com você. Mas eu fazia alguma coisa que deixava ela brava, e então um bicho esquisito vinha atrás de mim, com umas garras pontudas, e todo escuro, e.

Ele parou quando se deu conta da presença de Ramirez. Este se levantou, e tomou o rumo da porta.

- Como ia dizendo, tanto me importo, que não te impeço de visitar este fedelho e de tratá-lo como bem entender.
- Sim. – ela sorriu novamente. – Obrigado, Crip.
- Não me chame assim. – retrucou Ramirez, ríspido, e saiu.

Anna voltou-se novamente para o garoto com um olhar terno, e acariciou as maçãs de seu rosto, uma por vez. Ele voltou a falar depois de um tempo.

- Fiquei com um medo do bicho, tia.
- Não fique, era só um sonho.
- Ele me picava, parecia uma injeção. Hoje vai ter injeção?
- Vai, meu bem, hoje vai ter injeção, e também vamos tirar um pouco do seu sangue.
- E a água ruim?
- Vai ter água ruim.
- E o quarto piscante?
- Não, o quarto piscante é só amanhã. E depois você volta pro papai e pra mamãe.
- Vou? Vou mesmo?
- Claro que vai. Agora dá o braço pra tia.

Ele estendeu o braço imediatamente, enquanto ela puxava a agulha de forma quase imperceptível.

- A injeção vai parecer o bicho. Dói.
- Você não gosta?
- Não gosto, porque dói. Dói muito.

Anna segurou o braço, a princípio com delicadeza. Ele não esboçava no rosto o desgosto a que se referia, e ela mirou bem fundo em seus olhinhos enquanto aplicava a injeção.

- Isso é ruim? – indagou, puxando a pistola com velocidade.
- Ai!

O menino levou a mão ao braço, mas ela tomou de ambos e, antes de buscar um curativo, sugou o pouco sangue que o ferimento exalava com os lábios, e selou-o com um beijo.

- Tia, porque têm que fazer essas coisas ruins comigo?
- Ruins? Que coisas ruins?
- A injeção, a água, o quarto piscante.
- Não se preocupe, benzinho, depois de amanhã já vai passar e você vai voltar pra mamãe e pro papai.
- Mas você vem comigo, tia?

Ela aplicou o curativo que tinha preparado, mudando ligeiramente o tom da voz enquanto o fazia.

- Não. Não vou com você.

Anna pegou um roupão da parede e começou a vestir o menino com ele.

- Vamos, venha com a tia. Temos muita coisa pra fazer hoje.
- Vamos pra sala da água ruim? Não quero a água ruim.
- Não? – ela o fitou com seu olhar escuro e profundo, e ele calou-se. – Posso te deixar aqui.
- Quero ficar com você, tia.
- Então venha comigo.

Ele pulou da cama, mas não a seguiu simplesmente: agarrou-a pela cintura e enrolou-a com os bracinhos o melhor que podia, manhoso.

- Você fica comigo enquanto eu tomo a água? E enquanto tiro sangue? Eu não gosto, porque dói.
- Eu sei, eu sei. – ela afagou seus cabelos, e seguiu num murmúrio, que a criança, ainda que pudesse ouvir, não poderia compreender – Mas você vai precisar da dor pra conhecer o prazer, meu bem, vai precisar da morte pra saber da vida, vai precisar aprender a guardar o segredo para revelá-lo. Meu segredo, meu pequeno, meu anjo.

E abaixou-se, para ter certeza de que ele ouviria o final.

- Meu precioso Éadward.


posted by Heitor 22:53

 

 

 

 

Pop:

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A estória até agora (primeiro post em 22/07/2003):

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O LAR DO CARRASCO

Local: Rio de Janeiro, Brasil.

Época: 2058 D.C.

Condições: As cidades e as pessoas não mudam - não no que interessa. Mas se você se preocupa com os detalhes, eis um glossário para os perdidos.

DRAMATIS PERSONAE

Aécio: tutor de Márcia, a quem acolheu e criou desde muito nova.

Alice: mais nova residente do edifício de Eduardo, onde ocupa o décimo primeiro andar. Razoável, amigável, tolerante, bem-humorada, dona de olhos muito claros. Ocasionalmente causa um asco terrível e inexplicável a ele.

Ana: mulher misteriosa que Eduardo encontra no Jason’s. Pálida, cabelos da cor do fogo e olhos de um escuro imenso, fala de maneira oblíqua, desaparece quando bem entende e parece conhecer todos os segredos. Samantha alega que ela mente ao dizer seu nome.

Big H: hacker investigado por Caio, cujos logs costumava alterar de maneira provocativa.

Caio: músico do andar acima de Sônia. Sentia falta de intimidade. Freqüentava forums sobre sexo. Andava mexendo com um hacker chamado Big H. Foi encontrado morto no próprio quarto, talvez assassinado; muitas suspeitas recaem sobre Eduardo. Este por sua vez acha que foi Ana.

Dr. Cristóvam Ramirez: proprietário dos laboratórios Ramirez, foi o cabeça do projeto Ártemis. Tentou dissuadir, em vão, Oxford a não fugir com o Chronos. Desapareceu alguns anos atrás. Tem predileção por vocábulos de negação.

Dr. Richard Oxford: dono do restaurante onde Soraia atualmente trabalha. No passado, foi parte da equipe do projeto Ártemis, trabalhando com Ramirez. Desenvolveu o Chronos, um potente agente contra o envelhecimento, que por sua vez gerou um vírus terrível que exige vidas humanas para ser contido.

Dra. Anna Ericsson: bióloga, suas descobertas levaram à criação do projeto Ártemis, o qual integrou. Sônia verificou pelos arquivos que ela tinha os olhos escuros.

Eduardo: fio condutor da narrativa, é mestre em circuitos tecno-orgânicos de precisão, artista plástico frustrado e famoso bem sucedido. Profundamente entediado, adquiriu os hábitos peculiares de desligar as câmeras do seu vlog, de encontrar-se com uma ruiva de olhos escuros, e de ser suspeito de homicídio.

Heitor: autor desta estória.

Higínio: vigia dos registros de logs. Trabalha para a Z, mas tem um supervisor direto de identidade ainda desconhecida.

Homem de Capote Marrom: estranho de olhos muito claros por quem Márcia sentiu-se atraída uma noite no Jason’s, mas com quem nunca nem ao menos travou diálogo.

Irene: mora abaixo de Eduardo. Tem uma constituição física frágil mas esteticamente perfeita. Acredita em explicações lógicas para os sentimentos, e que o amor é uma projeção. Gosta de discutir e prender os outros interlocutores em armadilhas de argumentação lógica; Eduardo é o único capaz de rechaçá-la, o que tem por hábito fazer.

Jason: inglês, dono do bar Jason’s, freqüentado por Eduardo, trabalhou para a Z na busca dos restos do veículo ARX-Maglev.

Jorge: Engenheiro termodinâmico, reside dois andares abaixo de Eduardo, com quem simpatiza. Aficcionado pela profissão, metódico, muito sério no que faz, tem surtos de escapismo frenético.

Márcia: vizinha de Eduardo, mora no 1° andar do prédio. Perdeu os pais e o irmão gêmeo ao fugir na ARX-Maglev, quando criança. Pensa pouco antes de agir. Adora vermelho.

Maria: síndica do prédio, reside dois andares acima de Eduardo. Autoritária. Irrita-se com facilidade.

Miguel: vizinho de Eduardo, mora no andar imediatamente acima ao dele. Está de viagem há um mês e meio e deixou uma procuração com Alice para as reuniões de condomínio.

Mr. D: bio-hacker, aparentemente sub-contratado pela Z ou pela Styx. Criou a trava de segurança do vírus que o Chronos gerou.

Raphael Pontes: romancista de renome, autor de “De Fogo e de Vento”, a quem Sônia e Márcia muito apreciam.

Rubens: vizinho do 5° andar de Eduardo, é o mais jovem residente. Provocador e arrogante, irrita muito a Alice.

Safada_23, Fernanda, Taíse, Bruno, Carol, Luísa, Netrap, Hentai_Princess, Sweet, O outro e Slayer: participantes do holo-fórum “Debatendo Sexo em Aberto”. Caio acredita que Slayer seja, na verdade, Ana, e que ela tenha lhe enviado bilhetes. Slayer declarou que Caio morreria se continuasse a bisbilhotar Big H.

Samantha: irmã gêmea de Sônia, com quem divide agora o mesmo corpo e vida. Terrorista, promoveu diversos atentados aos laboratórios Ramirez. Deixou várias anotações misteriosas para a irmã, que as enviou a alguém que assina como R.

Sônia: repórter, mora dois andares acima de Márcia. Não é filha de um mortal. Sacrificou metade de sua vida para salvar a de Samantha, sua irmã gêmea. Recebeu bilhetes misteriosos que desconfia terem sido feitos por Eduardo. Rói as unhas. Tem uma curiosidade suicida.

Soraia: vizinha de cima de Márcia, bióloga em formação educacional, mas atualmente trabalhando como chefe de cozinha para Oxford. Já foi objeto do amor de Eduardo, que ainda lhe guarda rancor pelo desprezo que recebeu em troca; atualmente acusa-o de destruição de propriedade e do assassinato de Caio, nessa ordem. Tem imensas coleções no apartamento e olhos castanhos muito largos. Não gosta que gozem em seu edredom.

Tiago: antigo amigo de Eduardo, com quem perdeu o contato, reside na cobertura de seu edifício, onde passa o dia rabiscando desenhos, poemas e semelhantes obras de arte. Quieto e alienado do restante dos moradores, tem um séqüito de lags extremamente fiel.

VOCABULÁRIO

- .sdr: abreviatura de system damage report (relatório de danos no sistema); usada para identificar um formato de arquivo que mistura voz, texto e imagem para reconstituir e avaliar eventos danosos a um sistema digital.

- Amp: formato de gravação áudio/vídeo digital que consagrou-se como o mais rentável de todos, e eventualmente tornou-se sinônimo da gravação. Note-se que, hoje em dia, a capacidade de armazenamento dos drives caseiros (que existem em grande quantidade, cada pessoa possui vários drives e para várias funções) é tão grande, a de compressão do amp tão pequena, e a transferência da rede para qualquer aparelho, mesmo um trimag, tão rápida, que só os mais preciosistas preocupam-se em transferir as amps que possuem para DVD. A maioria apenas mantém um backup e pronto.

- Analfa: burro, idiota, estúpido, aculturado, etc. Membro da classe baixa, em oposição ao apelido “Huxleyano” da elite (alfa). Gíria muito antiga que retornou ao jargão recentemente.

- Bal: prazer, satisfação breve e facilmente adquirida.

- Ecotec: aglutinação dos vocábulos “tecnologia” e “ecologia”. Todo utensílio ligado à preservação do meio-ambiente, particularmente os mais modernos.

- Escrotar: você pode imaginar o que seja.

Fabrique: da gíria francesa “fabriqué”, muito em voga nos idos de 2030. Adjetivo que designa artificialidade, algo “com cara de recém-saído da fábrica”, certinho, reto, perfeitamente angulado, quadrado.

- Fud: misto de boite, motel, prostíbulo e casa de jogos muito comum na noite carioca.

- Grito-Mestre: objeto, quase sempre um documento, de grande importância, ou contendo informação importante.

- HV: holovisão. Aparelho semelhante à TV, só que em 3D. O nome completo, em teoria, é Tele-Holo-Visão, mas ninguém usa esse termo, mesmo formalmente.

- Maltrão: membro da classe baixa (ralé). Termo levemente informal.

- Mercúria: micro-câmera voadora para uso pessoal, programada para rotacionar em torno do usuário e filmá-lo de ângulos diversos. Usada em conjunto com o trimeg, permite que o dono de um log seja acompanhado online realmente 24hs. por dia. O modelo e a logo-marca pertencem a Z.

- OC: abreviação de Oceania, conglomerado empresarial originariamente asiático que domina os mercados da produção artística (música, escultura, cinema, teatro – a mais decadente de todas, dança, escrita fictícia e documentária, em prosa ou verso, pintura, arte sequencial e interativa), além das tecnologias de transporte, agricultura, fornecimento de alimentos e congêneres. É encarregada do fornecimento de drogas e é a criadora do soma. Além disso, encarrega-se do que já foi o Poder Legislativo. Teoricamente, compete com a Z e a Styx, mas todos sabem que elas são parceiras no que concerne ao governo do mundo.

- Ouél: membro da classe econômica alta (elite). De conotação apenas levemente informal.

- Pé: membro da classe baixa (ralé). Termo razoavelmente pejorativo.

- Pop: uma ampliação do sentido de hoje em dia. Além de abreviação para “popular” e “popularidade”, é a unidade de medida de audiência, e usado para qquer coisa q envolva audiência ou fama em geral.

- Rap: adjetivo para escandaloso, chamativo, estiloso.

- Ritar: chamar, ligar para, “telefonar” (quase não se usa mais telefone desde a popularização do vídeofone); atingir, acertar, golpear.

RPC: abreviação de “rio pra caralho” (ou “rindo pra caralho”); inspirada no “laugh my ass off” americanos, é usado em conversas de texto da Rede como expressão de estado de humor do interlocutor, e denota, como se pode deduzir, riso intenso, quase incontrolável.

- Rúfer: chefão, homem de cima, quem manda; alguém que não abdica de uma vantagem.

Streamline: corrente em inglês, designa uma via de acesso de dados em rede.

- Styx: conglomerado empresarial europeu que domina todos os setores bio-medicinais e de extração mineral (da medicina à clonagem, do garimpo às Usinas Solares e Nucleares). Além disso, são encarregados dos serviços funerários e do que já foi o Poder Executivo local, isto é, exercido nas unidades federativas (prefeito, governador, etc.), visto q o Executivo Nacional não mais existe como tal. Teoricamente é competidora da Z e da OC, mas é fácil deduzir que elas, na verdade, auxiliam-se mutuamente para ditar o rumo da Nova Ordem Mundial.

Tiltado(a): pasmo, estupefato; catatônico.

Torre: denominação dada a um setor de armazenamento de informações digitais organizado em níveis.

- Trimeg: corruptela de 3mg, por sua vez abreviação de mini-multi-media gadget, descendente distante do celular que congrega as funções de videofone, videogame, reprodutor e gravador de arquivos de áudio e vídeo, câmera filmadora e fotográfica, além de transferência de dados usuário-usuário, e acesso completo à Rede. A tecnologia e a logomarca pertencem à Z.

- Z: o maior conglomerado empresarial do mundo, surgiu na América do Norte e dominou todos os setores de informática, comunicação, fornecimento de energia, navegação aero-espacial e, como se não bastasse, virtualmente todo o arsenal bélico do planeta. Controla a Justiça, a(s) Igreja(s), e os registros históricos, tanto em arquivo como em museu. Em teoria, compete com a OC e a Styx; alguns diriam que todas as 3 trabalham em conjunto para governar o planeta; mas não seria exagero nenhum dizer que é Z quem detém o poder de fato.

- Zerar: acabado, terminado, completo, como nos videogames, mas de uso mais amplo.

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O MANDANTE DO CRIME

Nome: Heitor Coelho

Idade: 76

Paradeiro: desconhecido

Formado em: Direito com pós-graduação em Astrologia Jurídica; Astronomia; Teoria da Levitação; Projeciologia.

Gosta de ouvir: sons das profundezas do inferno ou laranjas caindo no lodo, o que vier primeiro.

Livro: sua cara por um preço camarada.

Nas horas vagas: viagens ao Submundo.

Qual a intenção desse blog: contar uma boa estória. Não reparou, retardado?

Signo: adivinha.

Aí, galera do Megazine: vão se fuder!

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