"(...)Não acontecia nada e o tédio não passava e ele sempre chegava em casa apenas pra ficar ali olhando o nada, sem nem conseguir dormir de tão vazio que se sentia. Até que naquele domingo, por algum motivo, a câmera em sua escrivaninha passou a lhe importunar profundamente. Com uma naturalidade um tanto bizarra, então, pressionou o botão vermelho e desligou-a, logo fazendo o mesmo com o resto das câmeras da casa – e pensando que muitos outros ao redor do mundo, e até mesmo muitos outros naquele edifício, tinham por costume fazer o mesmo de vez em quando; pensando que aquilo jamais poderia trazer-lhe grandes conseqüências.

Mas não."
O CARRASCO DE ÓRION

29.9.03

 

Jamais imaginou que pudesse vir a odiá-la tanto quanto a havia amado no passado, em seus tempos de colegial. Naquela época ela era tudo que se podia almejar: linda, doce, gentil, alegre e inabalável diante de qualquer desafio. Não ousada, inabalável – havia uma diferença enorme que ele percebia.

Na verdade, percebia agora também que havia odiado Soraia desde que ela o rejeitara e destruíra seus sonhos juvenis, quase uma década antes; e que ela de fato pouco havia mudado desde então: seu trabalho, sua atitude, sua maneira de viver refletiam um gosto profundo que o irritava a ponto de querer explodir.

Gosto? Palavra errada, talvez. Superficialidade? Uma pitada. Era... Onde estava a palavra certa praquilo?

Analisou o apartamento dela na busca, porque já tinha certeza de que ele responderia melhor. Por quê? O apartamento de Soraia era, ou parecia, maior que todos os outros. Diz-se maior no caso em todos os sentidos, não só mais espaçoso, mas mais vultuoso, chique, elegante, enfim, tudo que se pode desejar de um bom apartamento. E ela nem bem limpava nada sozinha, tudo parecia simplesmente conservar-se na mais perfeita ordem, brilhante, intacto e sem poeira.

Na varanda havia um pequeno jardim – a varanda de Soraia era enorme, muito maior que a dos outros, porque na verdade tinha sido “esticada” até o solo: ela não ficava no mesmo local das varandas dos demais apartamentos, assim tinha sido possível transpor a distância entre ela e o chão com uma boa quantidade de granito sólido. O jardim era pequeno, mas florido, e ela cuidava dele todo santo dia praticamente na mesma hora e levando o mesmo tempo – pouco tempo.

Mas havia muito mais que isso. Na sala, Soraia conservava 3 grandes pilhas de velhos CDs e DVDs ao lado do tocador; e ao lado destes, mais outra pilha de incrivelmente velhos discos de vinil. Havia fitas, também, no armário, e uma outra imensa coleção de amps guardadas no drive da sala – e quase metade das canções em cada mídia estava disponível em cópias dos outros tipos. Havia uma estante imensa de livros em cada parede, e sobrava espaço o suficiente para lotar o resto de quadros – ainda que houvesse muito mais deles guardados num armário no início do corredor.

Neste mesmo armário ficavam os filmes, séries e gravações pessoais, em fita, DVD e backup de seus amps, em duas e três dimensões; havia também um gigantesco álbum de fotografias, suas e de outros, em papel e em backup...

Agora, perto de seu quarto, nada disso era impressionante.

O quarto de Soraia fervilhava de pequenas coisinhas guardadas sobre estantes, em gavetas e armários – e até estes eram em profusão. Havia brinquedos (bonecas, casinhas, lojinhas, até brinquedos de “meninos”, como robôs, soldados e carros...), perfumes, fitas, louças finas, garrafas e latas velhas de refrigerante, pôsteres, cartazes, bandeiras, selos, estampas, álbuns, recortes de jornal e revistas, canetas, borrachas, dados, dardos, adesivos, doces (tinha um tipo para cada dia da semana, e ela os comia sempre nos mesmos horários), elásticos, fitas adesivas, colas coloridas. Isto sem contar o “básico”: roupa (blusas, camisas, camisetas, saias, sandálias, botas, sapatos, casacos...), roupa de cama, roupa de banho.

Aliás, não vamos nem falar no banheiro e na cozinha.

Observar Soraia e perceber a verdadeira escala de suas meticulosas posses logo fez com que a imaginação de Eduardo se atiçasse, mas não foi o que lhe fez chutar o balde. Não. Isso só aconteceu quando sua raiva lhe subiu à cabeça; e isso, por sua vez, só aconteceu quando Caio passou por lá, num belo fim de tarde de sexta-feira.

Ele entrou, com seu estranho alto-astral melancólico. Ouviram música. Lancharam qualquer coisa na exuberante cozinha de Soraia. Tomaram um pouco de Sin. Ele cantou um poema romântico estúpido. Fofocaram. Falaram de Eduardo. Ela o conduziu até o quarto. Treparam.

Ela gritava que era a melhor foda da vida dela, que estava tendo prazer inconcebível. Parecia ter gozado 21 vezes em 12 minutos, um absurdo; Caio estava perdido no quarto, olhava pra si mesmo como quem perguntasse “o que foi que eu fiz?”. Ela pegou o pau dele e o espremeu entre os seios – ela nunca fazia isso, era uma das coisas que ela não fazia nunca. Gemia desvairadamente, desavisado pensaria que ali no meio tinha o triplo de terminações nervosas de uma pessoa comum.

Então quando ele foi gozar, Eduardo percebeu isso num reles instante: ela olhou pra Carlos com ares ameaçadores. Ele virou-se de lado e gozou para fora da cama.

- Meu edredom! – ela gritou. O edredom estava no chão. – Meu edredom, seu filho da puta! Você goz. Que é isso??! Minha loja de sorvetes! Minha loja de. Eu tenho isso desde os 6 anos!! Desde os 6 anos e você encheu essa merda com a sua porra imunda! Seu filho da puta cretino!!!

Expulsou ele de casa nu a base de tapas. Guardou a roupa como se fosse um troféu.

No dia seguinte de manhã, Eduardo entrou lá, desligou a câmera, queimou o edredom e esmigalhou a lojinha de sorvetes – e foi como se uma grande nuvem desaparecesse de sua mente.

posted by Heitor 23:39

22.9.03

 

II. VIDA

Fazia uma semana desde que encontrara Ana no bar, e já nada parecia fazer o menor sentido.

A vida seguiu em frente, apesar do desejo de Eduardo de que parasse no tempo, repetindo eternamente o momento em que ela lhe sussurrou seu nome à distância, e podia ouvi-lo ecoar pelas paredes cada vez mais alto, cada vez mais distante do que se lembrava anteriormente – o que não fazia a menor diferença a ele, que se divertia reconstruindo e construindo em cima dos fatos.

Era o único alento para levá-lo adiante nos dias tediosos e rotineiros do laboratório, mexendo em circuitos bio-orgânicos minúsculos que exigiam dele concentração absoluta, rodeado de máquinas – das que vestiam e das que não vestiam roupa de gente – incentivado por recreações falsamente incentivadoras, estimulado por mensagens de gosto duvidoso, uma sala de design esdrúxulo e plantas de plástico, até quase cair pra frente ante tamanha enfadonhice; se é que existia algo como enfadonhice.

Então passou a primeira semana com a cabeça em Ana, ainda que suas mãos se ocupassem de outra coisa. Tudo que revivia eram aqueles momentos, e tudo que antecipava eram seqüências, reencontros. Saindo do trabalho seu espírito enchia-se de uma energia sem par, uma vontade de viver inabalável como não sentia há anos, revivida pela ânsia de revê-la. Retornou ao bar todos os dias daquela semana, e em nenhum a avistou novamente; ao fim do sétimo dia, perdeu a esperança – mas aquele estranho ânimo pós-expediente permaneceu.

No início, sua manifestação mais freqüente era dentro de quatro paredes, pelo seu simplório comportamento na própria casa. Primeiro, porque a presença das câmeras freqüentemente agora o incomodava. Segundo, porque acabou com todo seu consumo de alucinógenos – pareciam-lhe agora não menos do que um punhado escroto de comprimidos, líquidos e pós de gosto duvidoso. Terceiro porque, apesar de toda a energia, o que mais fazia era parar e meditar sobre a vida, ora andando de um lado pro outro, ora deitado na cama mirando o teto, ora vendo os programas da HV, em especial o de seus colegas e vizinhos – aliás, estes mais ainda.

Não conseguiu concluir grandes coisas sobre a vida, afinal. Pensou muito em todas as câmeras, no porquê de o incomodarem agora – mas não conseguiu concluir muita coisa além do óbvio “não gosto delas”, o que apenas contribuiu para elevar seu pop para níveis jamais vistos, atiçar a curiosidade de inúmeros estranhos com quem ele jamais viria a se importar, e levantar suspeitas em seus vizinhos. Tampouco pôde tirar qualquer lição de seu encontro com Ana, ou de seu ânimo renovado. Mas concluíra, com apenas 3 dias de atenção redobrada aos programas de seus vizinhos, que, embora tivesse certo desgosto de vê-los abdicando tão cruamente de sua própria privacidade, gostava de tentar compreender os motivos por detrás de seus atos, de entender como funcionava a lógica da historinha de cada um, e redescobriu naquilo o prazer que havia perdido na HV. Resolveu acompanhá-los de maneira mais profunda, um por um.

Tentou começar por Tiago, porque ambos já tinham sido muito próximos um dia, quando eram vizinhos em outro edifício, e agora estavam distantes. Eduardo ansiava por compreender o que levara a este distanciamento, e observou-o por um pouco de tempo; mas tudo que Tiago fazia o dia inteiro era pintar estranhices na parede do quarto, rabiscar poesias em papel rascunho e digitar palavras insensatas no seu log “underground”. Tudo que o sustentava como ser vivo era o grupo de lags que o tratavam como cult e idolatravam todas suas atitudes sem sentido.

Entediante demais, pensou Eduardo, tomando por respondidas suas dúvidas, e passou adiante para Márcia.

Esta, por sua vez, era ativa demais. Márcia vivia num rush contínuo, e mesmo quando parava em casa para pensar, nunca era tempo demais num só cômodo, ou fazendo a mesma coisa. Além disso, meditava Eduardo, faltava continuidade em sua história; por exemplo: no dia em que Eduardo acompanhou seu programa inteiro, ela acordou fixada num vestido que tinha visto à venda. Falou, falou, falou no vestido o dia inteiro, no fim do dia comprou, depois mostrou a Rubens, vestiu, tirou, deu a bunda pra ele, e quando saiu de lá, por causa de um papo na cama com ele, cismou que queria fazer biscoitos com creme de leite – que não sabia ainda, mas iria aprender a fazê-los. Idéia que abandonou logo no fim da noite, esquecendo por completo para nunca mais se lembrar, quando se sentou para fazer um relatório da firma onde trabalhava. Havia uma força irrefreável em seus atos, mas nunca prolongamento ou o compromisso que o divertiriam.

Chato.

Seguiu para Jorge, provavelmente o vizinho que mais simpatizava com ele naquela época. Mas também sua vida caiu no desgosto de Eduardo, pois ele não fazia – como era bastante fácil de se adivinhar – praticamente nada que não fosse ligado ao trabalho de engenharia termodinâmica e suas diversas repercussões. De vez em quando, nos raros momentos em que sua mente não suportava mais as experiências, leituras instrutivas, jogos e programas de HV a respeito, ele escapava ora prum puteiro, ora prum cassino (ainda que em Rede), ora pra casa de uma das vizinhas onde estivesse rolando um balzinho. Mas não parecia nunca, mesmo nestes momentos, parar de pensar na termodinâmica, e isto irritou Eduardo profundamente, incitando nele uma ânsia zombadora que desconhecia possuir até então.

Começou a deixar bilhetes para assustar Jorge, espalhados nos lugares onde sabia que ele estaria, sobre as coisas que ele esquecia que não eram segredo – pois passavam na HV pra todo mundo assistir. Assinou como uma das putas insinuando gravidez uma vez; uma cobrança do cassino na outra, e ainda uma terceira onde marcava um falso encontro com Maria. Eduardo não queria fazer aquilo; Jorge era legal com ele, um bom sujeito, mas... mas ele merecia? Era essa a resposta? Talvez alguém mais merecesse.

Decidiu mudar de alvo, e escolheu Sônia. Sua vida era agitada, ele sabia, como a de Márcia – mas não demorou para Eduardo descobrir o que ela temia, e começar a pregá-la peças. Escolheu usar charadas porque – e não sabia bem de onde tinha tirado essa idéia – sabia que ela se divertiria com elas no começo, e quando fosse realmente ferida por aquilo, sua surpresa seria tão grande quanto sua dor. Mas não esperou pra ver o resultado, passou logo a Maria.

Esta, ele sabia, nem precisaria de muito esforço pra ficar irritada, então apenas desordenou uma meia dúzia de papéis do condomínio e observou ela despejar autoritarismo por todos os poros em um ou dois acessos de raiva. Passou então pra Rubens, e deste pra Irene, e desta pra Caio, e a esta altura já estava virando a vida dos condôminos de cabeça pra baixo e divertindo-se muito.

Divertindo-se? Não, não era essa a palavra. Eduardo não ria, não se sentia bem, não tinha alegria em ferir os corações de seus vizinhos. Apenas o fazia e, abrindo um leve sorriso quando terminava, tinha a sensação de dever cumprido.

Até que chegou em Soraia.
posted by Heitor 21:06

10.9.03

 

UM TOM DE VERMELHO

Oi bem vindo ao meu log escrito. não pus uma intro, se quiser uma leia "De Fogo e de Vento", de raphael Pontes.

15 DE NOVEMBRO, 2058.

todo mundo vive dizendo q sou impulsiva. gente!fico muito tiltada com isso. Deve ter alguma coisa de razão, acho pq sempre me dizem isso, uma vez disse q naum era, um monte de amigos meus em volta começaram a rir pra caralho, de estourar de rir.
por isso comecei a achar q devia ser verdade, e se vc for ver, é, e eu sou feliz assim, muito feliz. eu naum eprco tempo nem revisando esses textos do meu log, tá bom assim, ué! Tão entendendo num tão? então.
Mas eu acho q isso mee faz mais feliz pq quem pensa muito perde uma oportunidade. O Heitor lembra bem dakele sujeito q encontrei uma vez no Jason's, um cara muito gato de capote marrom com os olhos claros nossa! eu tive um segundo pra fazer alguma coisa, uns minutinhos, o cara tava claramente me olhando, ia balzar com certeza se eu chegasse perto, mais tarde ele até ficou amigo do Heitor e deixou escapar q tinha certeza q ia rolar e num rolou. Pq? pq eu hesitei, quem hesita perde.
aí todo mundo fica todo "não, peraí, não é bem assim, vc não pode ser assim com tudo pq se vc age errado, fode tudo, e bláblablá. Mas aí eu tenho uma teoria, pq é a seguinte, vc vai logo reparar, comigo pelo menos é sempre assim, vc repara q se vc faz uma coisa sem pensar nela nem um segundo, sem pensar em pq, sem pensar no depois, só pegando a primeira coisa q te vem a cabeça e fazendo, ela dá ceto. comigo é assim, eu acredito nisso, é intuição, é uma ligação sua intuitiva com o mundo q faz com q vc.... saiba o q fazer.
hj foi assim, quem viu minha HV ontem viu q eu tinha perdido um tempão falando com o Rubens q queria aprender a fazer biscoitos com creme de leite, e q hj eu passei um tempão na cozinha. ois então, viu como eu consegui, sem nem ver a receita? Eu fui tentando, qdo fui ver, tava feito! Jóia! Se eu tenho um conselhor na vida pra dar é esse, meninos: sigam seus instintos e vcs não vão se arrepender!
posted by Heitor 01:14

3.9.03

 

Ele podia jurar que já tinha estado lá.

O lugar fedia a velho. Tinha uma iluminação porca e mesas de um metal carcomido pelo tempo. As paredes eram de madeira, gritando para serem trocadas, polidas ou, ao menos, limpas. Havia uma tábua de dardos no primeiro andar e aparelhos de HV com 20 anos de idade pendurados no alto das paredes.

O cardápio, assim como a maior parte dos cartazes e anúncios, estavam em inglês, de onde Eduardo pôde deduzir que, se o dono não era estrangeiro, o bar com certeza era em grande parte voltado para eles. Mas mesmo sem isso era fácil ver que havia muitos turistas presentes, a maioria jovem e, pelos sotaques que entreouviu, ingleses. E havia brasileiros e cariocas também, de todas as idades, e de muitos tipos diferentes.

Estava relativamente cheio – com certeza espantosamente, para um dia de semana. Eduardo subiu ao segundo, e logo ao terceiro andar, onde, com um mero olhar de relance, pôde ver uma mesa vaga. Sentou-se.

Não demorou muito para uma jovem garçonete, baixa, com cabelos claros e um leve sotaque irlandês, o atendesse.

- Quer alguma coisa, um chopp, maconha, soma? Algo pra comer, talvez?

Não, moça ele não queria nada além de um tempo sozinho. Mas se dissesse isso, seria expulso do bar – melhor, do “pub”, como o lugar se auto-intitulava.

- Um chopp. – ele respondeu, e a garota correu ao balcão para, pouco depois, voltar com uma caneca cheia. Eduardo olhou em volta, em parte admirado, em parte decepcionado com o ambiente.

Era impressionante como era desconfortável, o bar, comparado com o que se oferecia naqueles dias. E não era nem barato, tinha acabado de constatar, ao verificar no cardápio o preço que pagara pelo chopp. Mas havia alguma coisa que o havia feito sentir-se tremendamente confortável ali; talvez a mesma que o fizera andar até lá numa noite fria sem motivo algum, talvez a mesma que levava todas aquelas pessoas, jovens e velhas, nativas e estrangeiras, a irem para lá como ele – aquela estranha familiaridade, aquele contato com o antigo... ou não, alguma outra coisa diferente, que ele não sabia identificar.

Passava um programa na HV, ele demorou a perceber que era o de Márcia. Uma recapitulação dos melhores momentos do dia – e lá estava ele mesmo, fodendo-a de quatro até que o pau de Jorge tampasse sua boca, pra dali a algum tempo enchê-la de esperma.

Grandes merdas, pensou. Grandes merdas, sexo na agavê, hoje em dia tinha o tempo todo, em todo o canto, as pessoas saíam fazendo na rua sem nenhuma cerimônia. Agora mesmo, a duas mesas de distância, tinha um sujeito lambendo a buceta de uma moça. No segundo andar, num canto mais escuro, lembrava-se de ter passado o olho por dois senhores se comendo. Alguém dava bola? Não. Mas quando a coisa era na HV, era um escândalo, uma rap, uma coisa louca.

Esperou por sentir os olhares do público voltarem-se para ele, sempre mirando a fama, sempre mirando os seres holovisivos como se fossem algo sobrenatural. Já estava se acostumando a essa porcaria de pop. Era o único jeito de ascender em qualquer profissão. Só que não sentiu olhar nenhum, as pessoas continuaram bebendo e conversando como se a agavê não existisse.

Ou melhor, sentiu só um. O olhar mais intenso que ele já havia sentido em toda sua vida.

Ela estava sentada exatamente em frente a ele, ao lado da escada. Era impressionante que ele não tivesse reparado antes; verdade que era o canto mais escuro do bar inteiro, mas ainda assim: era impressionante que ele não tivesse notado, impressionante que ela estivesse sozinha, impressionante que cada pessoa presente ali no terceiro andar naquele exato instante não estivesse parada, olhando pra ela.

Seus cabelos eram, não vermelhos, não amarelos, e sim da exata cor do fogo, sem tirar nem por, como uma tocha imóvel iluminando o canto escuro; mas isso parecia pouco. Seus lábios eram finos de um vermelho meio vivo, meio pálido, abertos num meio sorriso que nada revelava, apenas atraía; mas isso parecia pouco. Sua pele era um misto do vermelho que via dos lábios, com um branco de uma claridade lunar, um branco de areia fina, um branco que parecia ter nascido para contrastar com o resto dela; mas isso parecia pouco. Sua silhueta era uma composição de curvas proporcionais, meio indefinidas talvez pela escuridão, talvez pela roupa larga – e há quanto tempo ele não via alguém usando roupas largas como aquelas – que pareciam flutuar e ondular com cada leve movimento, borradas e perfeitas; mas isso também parecia pouco. Tudo isso parecia pouco perto de seus olhos.

Eles eram a coisa mais escura que Eduardo já havia visto em toda sua vida. Eram mais escuros que tinta preta, que o céu da noite. Eram mais escuros que a cor, eles pareciam sugar a luz ao redor dela... Mas havia um único facho de luz brotando do fundo de suas pupilas, e esse facho é que era penetrante, certeiro, arrebatador, e parecia adentrar pelos olhos de Eduardo e atingir o fundo de seu estômago. Ela deitou a cabeça na mão esquerda e ficou ali, olhando pra ele com seu olhar profundo, sem que ele pudesse mexer um dedo, dizer uma palavra.

Então ela se levantou da mesa, e saiu.

Eduardo demorou a se dar conta disso. Durante algum tempo apenas observou enquanto ela calmamente descia as escadas. Depois, quando entendeu que ela havia deixado o recinto e que seus instintos, mais uma vez, haviam lhe pregado uma peça, correu desvairado pela escadaria.

Na porta do bar pôde vê-la à distância, dobrando a esquina. Podia alcançá-la rápido, mas acabou, antes de correr na direção dela, gritando:

- Espere!

Ela virou-se de volta, e sorriu, inflando o peito de Eduardo com fogo e paralisando suas pernas com gelo.

- Quem é você?! – ele perguntou. – Aonde vive? Qual o seu nome?

- Sou Ana.

Havia uma familiaridade assustadora na voz dela, e em seu nome. Ana. Ele suspiraria os fonemas pelos próximos dias e semanas, sem conseguir deixar de pensar em como era ridículo, ridículo, só um nome, só uma mulher, só uma voz. Nada demais.

- Ana. – ele repetiu.

- A gente se vê. – ela se despediu. Era uma despedida. Seu vestido escuro e enorme esvoaçou levemente antes que ela dobrasse a esquina e desaparecesse.

Tão clichê. Eduardo foi até lá mas não a avistou. Não havia edifícios onde ela pudesse ter entrado, não havia transportes que ela pudesse ter usado – ao menos, não aparentemente. Clichê demais.

E não haveria mais nada no mundo que tivesse tanto efeito em Eduardo, depois de encontrá-la.
posted by Heitor 02:29

 

 

 

 

Pop:

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A estória até agora (primeiro post em 22/07/2003):

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O LAR DO CARRASCO

Local: Rio de Janeiro, Brasil.

Época: 2058 D.C.

Condições: As cidades e as pessoas não mudam - não no que interessa. Mas se você se preocupa com os detalhes, eis um glossário para os perdidos.

DRAMATIS PERSONAE

Aécio: tutor de Márcia, a quem acolheu e criou desde muito nova.

Alice: mais nova residente do edifício de Eduardo, onde ocupa o décimo primeiro andar. Razoável, amigável, tolerante, bem-humorada, dona de olhos muito claros. Ocasionalmente causa um asco terrível e inexplicável a ele.

Ana: mulher misteriosa que Eduardo encontra no Jason’s. Pálida, cabelos da cor do fogo e olhos de um escuro imenso, fala de maneira oblíqua, desaparece quando bem entende e parece conhecer todos os segredos. Samantha alega que ela mente ao dizer seu nome.

Big H: hacker investigado por Caio, cujos logs costumava alterar de maneira provocativa.

Caio: músico do andar acima de Sônia. Sentia falta de intimidade. Freqüentava forums sobre sexo. Andava mexendo com um hacker chamado Big H. Foi encontrado morto no próprio quarto, talvez assassinado; muitas suspeitas recaem sobre Eduardo. Este por sua vez acha que foi Ana.

Dr. Cristóvam Ramirez: proprietário dos laboratórios Ramirez, foi o cabeça do projeto Ártemis. Tentou dissuadir, em vão, Oxford a não fugir com o Chronos. Desapareceu alguns anos atrás. Tem predileção por vocábulos de negação.

Dr. Richard Oxford: dono do restaurante onde Soraia atualmente trabalha. No passado, foi parte da equipe do projeto Ártemis, trabalhando com Ramirez. Desenvolveu o Chronos, um potente agente contra o envelhecimento, que por sua vez gerou um vírus terrível que exige vidas humanas para ser contido.

Dra. Anna Ericsson: bióloga, suas descobertas levaram à criação do projeto Ártemis, o qual integrou. Sônia verificou pelos arquivos que ela tinha os olhos escuros.

Eduardo: fio condutor da narrativa, é mestre em circuitos tecno-orgânicos de precisão, artista plástico frustrado e famoso bem sucedido. Profundamente entediado, adquiriu os hábitos peculiares de desligar as câmeras do seu vlog, de encontrar-se com uma ruiva de olhos escuros, e de ser suspeito de homicídio.

Heitor: autor desta estória.

Higínio: vigia dos registros de logs. Trabalha para a Z, mas tem um supervisor direto de identidade ainda desconhecida.

Homem de Capote Marrom: estranho de olhos muito claros por quem Márcia sentiu-se atraída uma noite no Jason’s, mas com quem nunca nem ao menos travou diálogo.

Irene: mora abaixo de Eduardo. Tem uma constituição física frágil mas esteticamente perfeita. Acredita em explicações lógicas para os sentimentos, e que o amor é uma projeção. Gosta de discutir e prender os outros interlocutores em armadilhas de argumentação lógica; Eduardo é o único capaz de rechaçá-la, o que tem por hábito fazer.

Jason: inglês, dono do bar Jason’s, freqüentado por Eduardo, trabalhou para a Z na busca dos restos do veículo ARX-Maglev.

Jorge: Engenheiro termodinâmico, reside dois andares abaixo de Eduardo, com quem simpatiza. Aficcionado pela profissão, metódico, muito sério no que faz, tem surtos de escapismo frenético.

Márcia: vizinha de Eduardo, mora no 1° andar do prédio. Perdeu os pais e o irmão gêmeo ao fugir na ARX-Maglev, quando criança. Pensa pouco antes de agir. Adora vermelho.

Maria: síndica do prédio, reside dois andares acima de Eduardo. Autoritária. Irrita-se com facilidade.

Miguel: vizinho de Eduardo, mora no andar imediatamente acima ao dele. Está de viagem há um mês e meio e deixou uma procuração com Alice para as reuniões de condomínio.

Mr. D: bio-hacker, aparentemente sub-contratado pela Z ou pela Styx. Criou a trava de segurança do vírus que o Chronos gerou.

Raphael Pontes: romancista de renome, autor de “De Fogo e de Vento”, a quem Sônia e Márcia muito apreciam.

Rubens: vizinho do 5° andar de Eduardo, é o mais jovem residente. Provocador e arrogante, irrita muito a Alice.

Safada_23, Fernanda, Taíse, Bruno, Carol, Luísa, Netrap, Hentai_Princess, Sweet, O outro e Slayer: participantes do holo-fórum “Debatendo Sexo em Aberto”. Caio acredita que Slayer seja, na verdade, Ana, e que ela tenha lhe enviado bilhetes. Slayer declarou que Caio morreria se continuasse a bisbilhotar Big H.

Samantha: irmã gêmea de Sônia, com quem divide agora o mesmo corpo e vida. Terrorista, promoveu diversos atentados aos laboratórios Ramirez. Deixou várias anotações misteriosas para a irmã, que as enviou a alguém que assina como R.

Sônia: repórter, mora dois andares acima de Márcia. Não é filha de um mortal. Sacrificou metade de sua vida para salvar a de Samantha, sua irmã gêmea. Recebeu bilhetes misteriosos que desconfia terem sido feitos por Eduardo. Rói as unhas. Tem uma curiosidade suicida.

Soraia: vizinha de cima de Márcia, bióloga em formação educacional, mas atualmente trabalhando como chefe de cozinha para Oxford. Já foi objeto do amor de Eduardo, que ainda lhe guarda rancor pelo desprezo que recebeu em troca; atualmente acusa-o de destruição de propriedade e do assassinato de Caio, nessa ordem. Tem imensas coleções no apartamento e olhos castanhos muito largos. Não gosta que gozem em seu edredom.

Tiago: antigo amigo de Eduardo, com quem perdeu o contato, reside na cobertura de seu edifício, onde passa o dia rabiscando desenhos, poemas e semelhantes obras de arte. Quieto e alienado do restante dos moradores, tem um séqüito de lags extremamente fiel.

VOCABULÁRIO

- .sdr: abreviatura de system damage report (relatório de danos no sistema); usada para identificar um formato de arquivo que mistura voz, texto e imagem para reconstituir e avaliar eventos danosos a um sistema digital.

- Amp: formato de gravação áudio/vídeo digital que consagrou-se como o mais rentável de todos, e eventualmente tornou-se sinônimo da gravação. Note-se que, hoje em dia, a capacidade de armazenamento dos drives caseiros (que existem em grande quantidade, cada pessoa possui vários drives e para várias funções) é tão grande, a de compressão do amp tão pequena, e a transferência da rede para qualquer aparelho, mesmo um trimag, tão rápida, que só os mais preciosistas preocupam-se em transferir as amps que possuem para DVD. A maioria apenas mantém um backup e pronto.

- Analfa: burro, idiota, estúpido, aculturado, etc. Membro da classe baixa, em oposição ao apelido “Huxleyano” da elite (alfa). Gíria muito antiga que retornou ao jargão recentemente.

- Bal: prazer, satisfação breve e facilmente adquirida.

- Ecotec: aglutinação dos vocábulos “tecnologia” e “ecologia”. Todo utensílio ligado à preservação do meio-ambiente, particularmente os mais modernos.

- Escrotar: você pode imaginar o que seja.

Fabrique: da gíria francesa “fabriqué”, muito em voga nos idos de 2030. Adjetivo que designa artificialidade, algo “com cara de recém-saído da fábrica”, certinho, reto, perfeitamente angulado, quadrado.

- Fud: misto de boite, motel, prostíbulo e casa de jogos muito comum na noite carioca.

- Grito-Mestre: objeto, quase sempre um documento, de grande importância, ou contendo informação importante.

- HV: holovisão. Aparelho semelhante à TV, só que em 3D. O nome completo, em teoria, é Tele-Holo-Visão, mas ninguém usa esse termo, mesmo formalmente.

- Maltrão: membro da classe baixa (ralé). Termo levemente informal.

- Mercúria: micro-câmera voadora para uso pessoal, programada para rotacionar em torno do usuário e filmá-lo de ângulos diversos. Usada em conjunto com o trimeg, permite que o dono de um log seja acompanhado online realmente 24hs. por dia. O modelo e a logo-marca pertencem a Z.

- OC: abreviação de Oceania, conglomerado empresarial originariamente asiático que domina os mercados da produção artística (música, escultura, cinema, teatro – a mais decadente de todas, dança, escrita fictícia e documentária, em prosa ou verso, pintura, arte sequencial e interativa), além das tecnologias de transporte, agricultura, fornecimento de alimentos e congêneres. É encarregada do fornecimento de drogas e é a criadora do soma. Além disso, encarrega-se do que já foi o Poder Legislativo. Teoricamente, compete com a Z e a Styx, mas todos sabem que elas são parceiras no que concerne ao governo do mundo.

- Ouél: membro da classe econômica alta (elite). De conotação apenas levemente informal.

- Pé: membro da classe baixa (ralé). Termo razoavelmente pejorativo.

- Pop: uma ampliação do sentido de hoje em dia. Além de abreviação para “popular” e “popularidade”, é a unidade de medida de audiência, e usado para qquer coisa q envolva audiência ou fama em geral.

- Rap: adjetivo para escandaloso, chamativo, estiloso.

- Ritar: chamar, ligar para, “telefonar” (quase não se usa mais telefone desde a popularização do vídeofone); atingir, acertar, golpear.

RPC: abreviação de “rio pra caralho” (ou “rindo pra caralho”); inspirada no “laugh my ass off” americanos, é usado em conversas de texto da Rede como expressão de estado de humor do interlocutor, e denota, como se pode deduzir, riso intenso, quase incontrolável.

- Rúfer: chefão, homem de cima, quem manda; alguém que não abdica de uma vantagem.

Streamline: corrente em inglês, designa uma via de acesso de dados em rede.

- Styx: conglomerado empresarial europeu que domina todos os setores bio-medicinais e de extração mineral (da medicina à clonagem, do garimpo às Usinas Solares e Nucleares). Além disso, são encarregados dos serviços funerários e do que já foi o Poder Executivo local, isto é, exercido nas unidades federativas (prefeito, governador, etc.), visto q o Executivo Nacional não mais existe como tal. Teoricamente é competidora da Z e da OC, mas é fácil deduzir que elas, na verdade, auxiliam-se mutuamente para ditar o rumo da Nova Ordem Mundial.

Tiltado(a): pasmo, estupefato; catatônico.

Torre: denominação dada a um setor de armazenamento de informações digitais organizado em níveis.

- Trimeg: corruptela de 3mg, por sua vez abreviação de mini-multi-media gadget, descendente distante do celular que congrega as funções de videofone, videogame, reprodutor e gravador de arquivos de áudio e vídeo, câmera filmadora e fotográfica, além de transferência de dados usuário-usuário, e acesso completo à Rede. A tecnologia e a logomarca pertencem à Z.

- Z: o maior conglomerado empresarial do mundo, surgiu na América do Norte e dominou todos os setores de informática, comunicação, fornecimento de energia, navegação aero-espacial e, como se não bastasse, virtualmente todo o arsenal bélico do planeta. Controla a Justiça, a(s) Igreja(s), e os registros históricos, tanto em arquivo como em museu. Em teoria, compete com a OC e a Styx; alguns diriam que todas as 3 trabalham em conjunto para governar o planeta; mas não seria exagero nenhum dizer que é Z quem detém o poder de fato.

- Zerar: acabado, terminado, completo, como nos videogames, mas de uso mais amplo.

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O MANDANTE DO CRIME

Nome: Heitor Coelho

Idade: 76

Paradeiro: desconhecido

Formado em: Direito com pós-graduação em Astrologia Jurídica; Astronomia; Teoria da Levitação; Projeciologia.

Gosta de ouvir: sons das profundezas do inferno ou laranjas caindo no lodo, o que vier primeiro.

Livro: sua cara por um preço camarada.

Nas horas vagas: viagens ao Submundo.

Qual a intenção desse blog: contar uma boa estória. Não reparou, retardado?

Signo: adivinha.

Aí, galera do Megazine: vão se fuder!

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